Antônio Roberto Soares
Todo
o comportamento humano decorre da concepção que nós temos da realidade e
nessa realidade existem dois pólos bastante distintos: aquilo que nós
somos e aquilo que nos cerca. Nossa postura na vida depende do modo como
estabelecemos essa relação: a relação entre nós e os outros, entre nós e
os membros da nossa família, entre nós e outros membros da sociedade,
entre nós e as coisas, entre nós e o trabalho, entre nós e a realidade
externa.
A nossa maneira de sentir e de viver depende de como
cada um de nós interioriza a relação entre essas duas partes da
realidade. E uma das formas que aprendemos de nos relacionarmos com os
outros é a postura que designamos por vítima.
O que é a vítima? A
vítima é a pessoa que se sente inferior à realidade, é a pessoa que se
sente esmagada pelo mundo externo, é a pessoa que se sente desgraçada
face aos acontecimentos, é aquela que se acostuma a ver a realidade
apenas em seus aspectos negativos. Ela sempre sabe o que não deve, o que
não pode, o que não dá certo. Ela consegue ver apenas a sombra da
realidade, paralelo a uma incrível capacidade para diagnosticar os
problemas existentes.
Há nela uma incapacidade estrutural de
procurar o caminho das soluções e, neste sentido, ela transfere os seus
problemas para os outros; transfere para as circunstâncias, para o mundo
exterior, a responsabilidade do que está lhe acontecendo.
Esta é
a postura da justificativa. Justificar-se é o sinal de que não queremos
mudar. Para não assumirmos o erro, justificamo-nos, ou seja,
transformamos o que está errado em injusto e, de justificativa em
justificativa, paralisamo-nos, impedimo-nos de crescer.
A vítima
é incompetente na sua relação com o mundo externo. Enquanto colocarmos a
responsabilidade total dos nossos problemas em outras pessoas e
circunstâncias, tiraremos de nós mesmos a possibilidade de crescimento.
Em vez disso, vamos procurar mudar as outras pessoas.
Este tipo
de postura provém do sentimento de solidão. É quando não percebemos que
somos responsáveis pela nossa própria vida, por seus altos e baixos, seu
bem e seu mal, suas alegrias e tristezas; é quando a nossa felicidade
se torna dependente da maneira como os outros agem.
E como as
pessoas não agem segundo nosso padrão, sentimo-nos infelizes e
sofredores. Realmente, a melhor maneira de sermos infelizes é
acreditarmos que é à outra pessoa que compete nos dar felicidade e,
assim, mascaramos a nossa própria vida frente aos nossos problemas.
A postura de vítima é a máscara que usamos para não assumirmos a realidade difícil, quando ela se apresenta.
É
a falta de vontade de crescer, de mudar‚ escondida sob a capa da
aparição externa. Essa é uma das maiores ilusões da nossa vida:
desejarmos transferir para a realidade que não nos pertence, sobre a
qual não possuímos nenhum controle, as deficiências da parte que nos
cabe. Toda relação humana é bilateral: nós e a sociedade, nós e a
família, nós e o que nos cerca.
O maior mal que fazemos a nós
próprios é usarmos as limitações de outras pessoas do nosso
relacionamento para não aceitarmos a nossa própria parte negativa.
Assim,
usamos o sistema como bode expiatório para a nossa acomodação no
sofrimento. A vítima é a pessoa que transformou sua vida numa grande
reclamação. Seu modo de agir e de estar no mundo é sempre uma forma
queixosa, opção que é mais cômoda do que fazer algo para resolver os
problemas. A vítima usa o próprio sofrimento para controlar o sentimento
alheio; ela se coloca como dominada, como fraca, para dominar o
sentimento das outras pessoas.
O que mais caracteriza a vítima é
a sua falta de vontade de crescer. Sofrendo de uma doença chamada
perfeccionismo, que é a não aceitação dos erros humanos, a intolerância
com a imperfeição humana, a vítima desiste do próprio crescimento. Ela
se tortura com a idéia perfeccionista, com a imagem de como deveria ser,
e tortura também os outros relativamente àquilo que as outras pessoas
deveriam ser.
Há na vítima uma tentativa de enquadrar o mundo no
modelo ideal que ela própria criou, e sempre que temos um modelo ideal
na cabeça é para evitarmos entrar em contato com a realidade. A vítima
não se relaciona com as pessoas aceitando-as como são, mas da maneira
que ela gostaria que fossem.
É comum querermos que os outros
sejam aquilo que não estamos conseguindo ser, desejar que o filho, a
mulher e o amigo sejam o que nós não somos.
Colocar-se como
vítima é uma forma de se negar na relação humana. Por esta postura, não
estamos presentes, não valemos nada, somos meros objetos da situação.
Querendo ser o todo, colocamo-nos na situação de sermos nada. Todavia,
as dificuldades e limitações do mundo externo são apenas um desafio ao
nosso desenvolvimento, se assumirmos o nosso espaço e estivermos
presentes.
Assim, quanto pior for um doente, tanto mais
competente deve ser o médico; quanto pior for um aluno, mais competente
deve ser o professor.
Assim também, quanto pior for o sistema ou
a sociedade que nos cerca, mais competentes devemos ser com pessoas que
fazem parte desta sociedade; quanto pior for nosso filho, mais
competentes devemos ser como pai ou mãe; quanto pior for a nossa mulher,
mais competentes devemos ser como marido; quanto pior for nosso marido,
mais competentes devemos ser como esposa, e assim por diante.
Desta
forma, colocamo-nos em posição de buscar o crescimento e tomamos a
deficiência alheia como incentivo para nossas mudanças existenciais.
Só
podemos crescer naquilo que nós somos, naquilo que nos pertence. A
nossa fantasia está em querermos mudar o mundo inteiro para sermos
felizes. Todos nós temos parte da responsabilidade naquilo que está
ocorrendo.
Não raras vezes, atribuímos à sociedade atual, ao
mundo, a causa de nossas atribulações e problemas. Talvez seja esta a
mais comum das posturas da vítima: generalizar para não resolver.
Os
problemas da nossa vida só podem ser resolvidos em concreto, em
particular. Dizer, por exemplo, que somos pressionados pela sociedade a
levar uma vida que não nos satisfaz, é colocar o problema de maneira
insolúvel.
Todavia, perguntar a nós mesmos quais são as pessoas
que concretamente estão nos pressionando para fazer o que nos desagrada,
pode ajudar a trazer uma solução. Só podemos lidar com a sociedade em
termos concretos, palpáveis.
Conforme nos relacionamos com cada
pessoa, em cada lugar, em cada momento, estamos nos relacionando com a
sociedade, porque cada pessoa específica, num determinado lugar e
momento, é a sociedade para nós naquela hora.
Generalizamos para
não solucionarmos, e como tudo aquilo que nos acontece está vinculado à
realidade, todas as vezes que quisermos encontrar desculpas para nós
basta olhar a imperfeição externa.
Colocar-se como vítima é
economizar coragem para assumir a limitação humana, é não querer
entender que a morte antecede a vida, que a semente morre antes de
nascer, que a noite antecede o dia. A vítima transforma as dificuldades
em conflito, a sua vida num beco sem saída. Ser vítima é querer fugir da
realidade, do erro, da imperfeição, dos limites humanos. Todas as
evidências da nossa vida demonstram que o erro existe, existe em nós,
nos outros e no mundo. Neurótica é a pessoa que não quer ver o óbvio.
A
vítima é uma pessoa orgulhosa que veste a capa da humildade. O orgulho
dela vem de acreditar que ela é perfeita e que os outros é que não
prestam. Crê que se o mundo não fosse do jeito que é‚ se sua esposa não
fosse do jeito que é‚ se seus filhos não fossem do jeito que são, se o
seu marido fosse diferente, ela estaria bem, porque ela, a vítima, é
boa, os outros é que têm deficiências, apenas os outros têm que mudar.
A
esse jogo chama-se o "Jogo da Infelicidade". A vítima é uma pessoa que
sofre e gosta de fazer os outros sofrerem com o sofrimento dela, é a
pessoa que usa suas dificuldades físicas, afetivas, financeiras,
conjugais, profissionais, não para crescer, mas para permanecer nelas e,
a partir disso, fazer chantagem emocional com as outras pessoas.
A
vítima é a pessoa que ainda não se perdoou por não ser perfeita e
transformou o sofrimento num modo de ser, num modo de se relacionar com o
mundo.
É como se olhasse para a luz e dissesse:
"Que pena que tenha a sombra...",
é como se olhasse para a vida e dissesse: "Que pena que haja a morte...",
é como se olhasse para o sim e dissesse: "Que pena que haja o não...".
E se nega a admitir que a luz e a sombra são faces de uma mesma moeda, que a vida é feita de vales e de montanhas.
Não
são as circunstâncias que nos oprimem, mas, sim, a maneira como nos
posicionamos diante delas, porque nas mesmas circunstâncias em que uns
procuram o caminho do crescimento, outros procuram o caminho da loucura,
da alienação. As circunstâncias são as mesmas, o que muda é a
disposição para o alvorecer e para o desabrochar, ou para murchar e
fenecer.
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